A exposição que aqui se faz é apenas uma mínima amostragem de como o material ósseo foi utilizado nos séculos passados atendendo às necessidades e demandas da sociedade do momento.
Os artefatos expostos foram encontrados no decorrer as escavações realizadas por ocasião das obras do Porto Maravilha, na cidade do Rio de Janeiro, evidenciando os modos de viver da Corte carioca em tempos passados.
Dentre os muitos tipos de materiais com os quais foram feitos tais artefatos (cerâmico, lítico, vegetal, metal, louça, vidro, malacológico, etc), chama a atenção o cuidado e a destreza do oficineiro ao trabalhar com o material ósseo e transformá-lo em um objeto destinado ao uso cotidiano.
A partir do material ósseo animal, surgiram objetos para fins de adorno, higiene pessoal, utensílio doméstico, lazer, vestuário e outros.
BOTÕES DE OSSOS
Apresenta-se aqui um conjunto de botões de tamanhos, furos, modelos e cores variados, encontrados no atual bairro da Saúde, na zona portuária. Os botões de material ósseo eram comercializados em armarinhos como o Figueira de Melo & C., à Rua do Ouvidor, 79, por exemplo, importante rua comercial do centro da cidade do Rio de Janeiro do século XIX (uma das mais elegantes!).
Nesta casa comercial instalada em um sobrado, anuncia-se “Botões de osso para calça, uma groza em caixinha”, segundo jornal de época de meados do século XIX. Da mesma forma, em 1858, o Sr. José Antonio Figueiredo, comerciante na rua do Ourives, nº 24, anuncia botões de ossos utilizados para em camisas, punhos, etc, além de outros produtos do armarinho.
Como botões também são classificados os que apresentam apenas um furo ao meio. Em Portugal, por exemplo, em uma escavação arqueológica realizada no Largo da Atafona, em Mouraria, foi encontrado o que teria sido uma oficina ou manufatura de botões de ossos (com um furo somente), bem como o descarte do material ósseo da sobra (VIEIRA at. ali,2019, p. 133).
BOTÕES DE OSSOS E RESTOS DE PRODUÇÃO – SÉCULO XIX
Também foram encontrados botões de ossos de um furo ao centro no Fort Stanwix National Monument, quando arqueólogos estudaram a Revolução Americana (EUA) ocorrida no século XVIII, naquele momento utilizadas para prender roupas íntimas (NATIONAL PARK SERVICE, s/d).
Suguimatsu analisou os botões encontrados no Colégio dos Jesuítas, localizado em Campos dos Goytacazes, onde ocorreu uma escavação arqueológica. Trata-se de uma fazenda, que após a expulsão dos padres Jesuítas do Brasil, passou à propriedade de Joaquim Vicente dos Reis, onde se encontravam mais de 1.000 escravizados (SUGUIMATSU, 2016, p. 5).
Do total dos botões lá encontrados no Colégio dos Jesuítas, a maior parte foi de botões de ossos (57,4%), tendo sido encontrados em variadas camadas arqueológicas e com datação do início do século XIX. No setor escavado referente ao espaço da senzala, 85,7 % eram botões de ossos.
Suguimatsu informa que são “Frequentes em sítios ligados à diáspora africana nos Estados Unidos e Caribe de meados do século XVIII a meados do XIX […]” (SUGUIMATSU, 2016, p. 64).
É possível também encontrar este mesmo artefato conhecido como “conta”, destinados à confecção de colares.
Também, contas de ossos confeccionadas a partir de chifre de búfalo, cortados em pequenos discos com 1 furo ao meio são utilizadas na confecção do colar chamado laguidibá, utilizado por sacerdotes e autoridades religiosas do Candomblé. No acervo do LAAU, há variados botões de ossos em tamanho e número de furos, tendo sido encontrados na região do Cais do Valongo e entorno.
Quanto à produção de botões ou contras de ossos na cidade do Rio de Janeiro, encontra-se no Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, de 1844, uma fábrica de botões (sem especificar os materiais trabalhados) à rua do Hospício nº 35, de propriedade de José Antônio Fernandes da Costa Silva Passos.
MATRIZES DE BOTÕES E CONTAS
Além dos botões ou contas de ossos, a Arqueologia encontrou as matrizes da fabricação desses artefatos, ou seja, foi possível perceber parte do processo produtivo através da matriz e do produto. As matrizes aqui apresentadas em frente e verso, foram encontradas na Rua Barão de Tefé, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.
Segundo o National Park Service, o processo de produção “começa com um pedaço plano de osso. Uma ferramenta manual de metal chamada ‘broca’ seria pressionada no osso e girada como uma broca para cortar um novo botão. Este novo botão seria polido e então um laço de latão seria encaixado em seu orifício central”. O que aqui chamamos de “matrizes” dos botões, seriam os restos do processo de fabricação.
Para a fabricação, Suguimatsu, informa os seguintes instrumentos de produção ao lado.
MIÇANGAS
O adorno trabalhado em material ósseo se faz presente de diferentes formas, como é o caso das miçangas encontradas na área próxima ao Valongo. Destaca-se o trabalho minucioso.
PEÇAS DE LEQUE
A origem do leque remota à China no século VII, foi muito utilizado no Japão, atravessou continente, chegando à Europa e ao Brasil no século XV. Apresenta desde então variados materiais, tamanhos e motivos decorativos. Na Europa ganhou status de nobreza, chegando assim ao Brasil ainda no período colonial. Ainda se encontra disponível para uso.
Observa-se em jornal de época que o objeto detinha importância no cenário social carioca e, como objeto demonstrativo de luxo e poder. No Rio antigo, a exemplo da Rua do Ourives, nº 99, são comuns anúncios de leques de “ossos muito ricos” à venda, em 1960.
O conserto de leques também era comum como revela anúncio no jornal Diário do Rio de Janeiro: “Fazem-se quaesquer concertos, por mais difficeis que sejam tanto em madrepérolas como em marfim, osso ou sândalo, tudo com a maior perfeição”.
CABOS DE TALHER
Dentre todos os talheres, a faca é o mais antigo tendo sido utilizado ainda na Pré-história, de pedra destinado a cortar animais, em vários continentes. Mais comum era comer os outros alimentos com as mãos. Com o passar dos séculos, o objeto foi sendo aperfeiçoado e confeccionado em outros materiais. Na Idade Antiga, é possível encontrar similares às colheres e na Idade Moderna apareceriam os garfos de vários dentes. Porém, o uso se consagrou entre os nobres na Idade Moderna e se popularizou na Era Contemporânea, predominantemente nas sociedades ocidentais.
Percebe-se nos artefatos arqueológicos encontrados na zona portuária do Rio de Janeiro cabos de talheres de variados materiais, dentre eles os confeccionados com ossos animais.
Em jornais de época é possível encontrar lojas comercias anunciando a chegada de talheres confeccionados em ossos, tais como os anunciados pelo jornal Correio da Tarde, em 1960: “2 embrulhos com 48 facas de ponta, com cabos de chifre e de osso”.
ESCOVAS
Dentre as escovas encontradas na zona portuária, a de dupla face é a mais peculiar. Apresenta nas duas extremidades orifícios para a colocação de cerdas em lados e face opostos.
Nos jornais de época encontram-se anúncios de escovas de ossos e outros materiais e para os mais variados fins. Curiosamente, em 1864, encontra-se no Almanak Laemmert a seguinte lista de materiais (enxoval) destinado às meninas que iriam ingressar em um colégio (internato), sito à rua do Lavradio n° 52: “1 escova para cabelos, 1 escova para limpar pentes, 1 dita para dentes, 1 dita para unhas”.
Interessante é a escola com a marca “SMITT.LONDON”. Infelizmente, não foram encontradas maiores informações a respeito da marca.
OUTROS OBJETOS
Constata-se variados objetos confeccionados em osso animal. Dentre os artefatos de ossos encontrados na zona portuária do Rio de Janeiro destacam-se os lúdicos (dados e dominós), o apito e as peças de guarda-chuva. Outras curiosidades a respeito dos artefatos produzidos a partir de ossos animais no Rio de Janeiro em meados do século XIX, porém sem imagens correspondentes:
• Objetos de ossos também eram importados, a exemplo dos que chegaram à cidade por cabotagem e endereçados a um importador de gêneros estrangeiros, em meados do século XIX;
• O jornal Correio Mercantil, em 1860, anunciou uma “Exposição da Indústria Suissa”, onde seriam oferecidos produtos destinados às festas. Dentre eles, esculturas em osso;
• Agulhas de crochê confeccionadas em osso também eram comercializadas. Em edital, foram leiloadas as mercadorias da barca inglesa Globe, naufragada em Saquarema, em meados do século XIX.
REFERÊNCIAS
NATIONAL PARK SERVICE. Bone Buttons & Manufacturing Tool. [s/d]. Disponível em: https://www.nps.gov/articles/000/bone-buttons-manufacturing-tool.htm Acesso em 10/06/2024.
SUGUIMATSU, Isabela Cristina. Atrás dos panos: vestuário, ornamentos e identidades escravas: Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século XIX. Dissertação (mestrado) – UFMG. Belo horizonte, 2016. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFMG_89025c4799da419a4fd7cb91e8d986d7. Acesso em: 30/07/ 2024.
VIEIRA, Vasco N. et ali. Vamos falar com os nossos botões: uma oficina do século XIX na Mouraria. In: Senna-Martinez, João Carlos et ali (Coords). In: Extrair e produzir… dos primeiros artefatos à industrialização: fragmentos de Arqueologia de Lisboa 3. Lisboa: Departamento e Patrimônio Cultural, 2019. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/40928/1/2019_DETRY1_FragmentosdeArqueologiadeLisboa3.pdf Acesso em: Acesso em 10/06/2024.